Uma Jornada Pelas Raízes da Medicina Tradicional na Nigéria e a Conexão com o Nosso Culto

Quando pensamos em tatuagem hoje, logo vem à mente moda, estilo ou uma expressão artística, não é mesmo? Influenciados pelo cinema e pela cultura ocidental, muitos jovens brasileiros aderiram a essa arte corporal. Mas e se eu te disser que, em algumas culturas tradicionais, a tatuagem tem um propósito muito mais profundo, ligado à saúde, cura e até à espiritualidade ancestral?
É exatamente isso que a pesquisa de Fatimah Mohammed Palmer nos revela ao mergulhar no universo do povo Esan, da Nigéria. Para eles, a tatuagem vai muito além da identificação tribal ou da beleza. Estamos falando do Uvinmi, uma prática ancestral que age como um verdadeiro tratamento curativo para uma doença misteriosa, chamada Udeh, que afeta o baço.
No site Raízes do Culto, sabemos a importância de valorizar e entender as nossas origens e as práticas tradicionais que moldaram diversas culturas. Vem com a gente desvendar essa sabedoria milenar e ver como ela se conecta com o nosso próprio entendimento de cura e fé!





1. A Tatuagem Além da Moda: Identificação e Propósito
No Brasil, a tatuagem é um fenômeno. Mas na Nigéria, ela tem raízes bem diferentes. Entre os Hausa e Fulani, marcas permanentes no rosto podiam identificar desde escravos até a beleza feminina. Já para os Yorubas, que tanto influenciaram nossas religiões de matriz africana, a tatuagem era um símbolo de identidade tribal, contando a história do indivíduo e suas crenças.
No entanto, o povo Esan, lá do estado de Edo, na Nigéria, nos mostra uma dimensão ainda mais fascinante: a tatuagem como medicina.
2. Esanland: O Berço de uma Medicina Ancestral
Localizada no sudoeste da Nigéria, Esanland é uma terra rica em cultura e história. Com cerca de 1,5 milhão de habitantes (sem contar a diáspora!), essa região é um mosaico de clãs e comunidades. Os Esans, que têm forte ligação com o antigo Império de Benin (inclusive na estrutura política e nos adornos), eram principalmente agricultores e caçadores.
A religião tradicional Esan, o animismo, ainda pulsa forte, mesmo com a chegada do Cristianismo. Eles acreditam na influência de “espíritos” nas vidas das pessoas, e doenças incomuns, como a insanidade, podem ser vistas como resultado de tabus quebrados ou ofensas. Essa fé profunda molda a forma como eles enxergam a saúde e a cura.
3. O Oboh: Guardião da Sabedoria e da Cura
Em Esanland, o Oboh, o médico tradicional, é a figura central da cura. Ele não só preserva a cultura medicinal do povo, mas também atua como um ponteiro entre o mundo visível e o invisível. Ao consultar o Oráculo, o Oboh oferece soluções que muitas vezes envolvem o uso de ervas, raízes e sacrifícios a divindades – tudo para restaurar o equilíbrio.
É nesse contexto que entra o Uvinmi.
4. Uvinmi: A Tatuagem que Cura o Udeh
“Uvinmi” significa literalmente “fazer uma marca incisiva usando um objeto afiado”. Mas, para os Esan, é muito mais que isso. É a arte de fazer incisões para remover o “sangue ruim” de um paciente que sofre de Udeh.
Mas o que é Udeh? Os Esan acreditam que Udeh é uma doença do baço. Para eles, quando o baço fica doente, forma-se um caroço que se conecta ao coração, sugando o sangue do paciente. Os sintomas variam: febre alta em crianças e anemia em adultos, com dor que vai do estômago até o coração. Se não tratada, pode levar a problemas respiratórios graves e, infelizmente, até à morte.
Como funciona o Uvinmi?
- A Incisão: Com uma lâmina chamada uche ou eloh, o Oboh faz cortes no corpo do paciente, geralmente pela manhã ou à noite, quando o caroço de Udeh estaria “escondido”.
- O Sangramento: A crença é que a sangria traz a cura, removendo o sangue “ruim”.
- Aplicação de Remédio: Após a incisão, um pó preto é aplicado diretamente sobre os cortes.
- Pós-tratamento: Os pacientes não tomam banho até o dia seguinte e recebem um chá amargo feito de raízes, folhas e cascas de árvores, tomado duas vezes ao dia. O consumo de leite e tônicos de sangue é proibido por meses, para evitar a “reinfecção” do baço.
Uma Tradição Familiar: A prática do Uvinmi é um legado, transmitido de geração em geração. Descobrimos que não é exclusiva dos homens, pois há relatos de curandeiros que herdaram a arte de suas avós, mostrando a força das matriarcas na transmissão desse conhecimento.



A Arte da Cura na Pele: Os padrões das incisões Uvinmi são únicos, variando conforme o gênero do paciente e sendo, inclusive, a “assinatura” do curandeiro. Como uma obra de arte, cada Oboh tem seu estilo, como o Príncipe Akhere, que criou seu próprio motivo, diferente dos desenhos de lagarto de seu pai.
5. Entre o Antigo e o Novo: A Adaptação Contemporânea
Apesar de ser uma prática ancestral, o Uvinmi também se adapta aos novos tempos. Hoje, alguns médicos tradicionais não consultam mais o oráculo para a Uvinmi, focando no conhecimento das incisões e das ervas. E o mais surpreendente: alguns Obohs, como o Príncipe Francis Akhere, começaram a usar anestesia moderna (lidocaína e adrenalina), com a ajuda de enfermeiras ocidentais! Isso mostra que até mesmo médicos formados na medicina ocidental, de origem Esan, reconhecem a eficácia do Uvinmi.



6. Reflexão e o Nosso Culto: A Ligação com as Raízes
A pesquisa nos convida a uma reflexão importante. Enquanto a medicina moderna já abandonou a sangria como tratamento geral (com exceções muito específicas), a prática de Uvinmi ainda persiste em Esanland. Isso levanta questões sobre diagnóstico preciso e esterilização, pontos importantes que a pesquisa recomenda serem melhorados.
Para nós, do Raízes do Culto, a história do Uvinmi é um lembrete poderoso: a medicina tradicional e a espiritualidade estão intrinsecamente ligadas em muitas culturas. O baço, na visão Esan, tem um significado profundo ligado ao sangue e à vitalidade, algo que ressoa com a importância do sangue e da vida em diversas tradições afro-brasileiras.
É essencial valorizarmos e estudarmos essas raízes, entendendo que a cura vai além do corpo físico e muitas vezes envolve a harmonização de energias e a reconexão com o sagrado. Que o Uvinmi nos inspire a olhar com mais respeito e curiosidade para as práticas de cura de nossos antepassados, sempre buscando o conhecimento e a segurança.
Convidamos você a refletir: como as práticas de cura ancestral se manifestam em seu próprio culto ou crença? Compartilhe suas experiências nos comentários!
Fontes e Referências:
Para a elaboração deste artigo, utilizamos como base a pesquisa original:
- Artigo Científico:
- PALMER, Fatimah Mohammed. Recapturing Traditional Culture – A Survey of Uvinmi Body Tattoo as a Curative Procedure in Esanland, Edo State, Nigeria. JAH (Journal of Arts and Humanities), Vol. 04, No. 08, pp. 59-66, 29 de agosto de 2015.
- Disponível online em: http://www.theartsjournal.org/index.php/site/index
Outras Referências Mencionadas no Artigo Original:
- AKHERE, F. (2015). Entrevista pessoal. 15 de janeiro de 2015.
- AWODEH, B. O. (2014). Entrevista pessoal. 20 de outubro de 2014.
- BRITISH SCIENCE MUSEUM (2015). “Bloodletting”. Recuperado em 27/08/2015 de: https://en.wikipedia.org/wiki/Bloodletting
- DEMELLO, M. (2004). Inked Tattoos and Body Art Around the world. Vol 2. M-Z (ebook) Santa Barbara California. www.abc-clio.com.
- ESAN MAP (2015) http://www.anogusa.org/Member_Orgs/eflg.htm.
- PARRY, A. (1971). Tattoo: Secrets of a strange Art practiced by the Natives of the United States of America.